sábado, 23 de março de 2013


IRÚNMOLÈ e o desejo por imortalidade

Identificar a origem das figuras que compõem as obras de Yuri Ferraz é algo incerto. E como o espectador seguro de seu repertório visual iconográfico pode se ver vítima da necessidade imediatista de reconhecer a identidade das figuras a sua frente, é melhor começar este texto por aquilo que, aparentemente, a sua produção não oferece. De fato, como representar não é a intenção primeira do artista, vale notar que identificar as figuras pode ser um exercício complicado. Isso porque o conjunto de pinturas oscila entre o reconhecível e o imaginado, formando uma entidade a partir da fusão de heróis e deuses. Cada um sendo um símbolo independente, evoca o desejo de imortalidade que, em todas as tradições, de todos os tempos, é reconhecido como o maior anseio do ser humano. O que o artista procura identificar são problemas decorrentes do fato de associarmos nosso desejo por imortalidade ao efêmero mundo fenomênico. O que resulta, incontestavelmente, em um dos maiores dilemas do sujeito enquanto lida com questões relacionadas a instabilidade e vulnerabilidade do corpo. No contra-fluxo deste dilema, as personagens míticas e populares, cuja identidade é venerada por carregar em nível supra-humano força, poder, fama e imortalidade, aparecem em meio a lutas fratricidas, aplicando em batalhas toda a potência venerada pelos mortais. Trata-se de grandes criadores, guerreiros e deuses, todos adoráveis em ritos ancestrais ou contemporâneos, encontrados em templos, nas telas de televisão, em álbuns de história em quadrinhos ou ainda através da sucessão de iniciados que mantêm a tradição dos ritos africanos. Estreitando o espaço e a existência de cada um deles, o artista instaura o que ele define como “campo de amplidão”, um lugar onde tempo, Natureza e Cultura díspares convivem na intenção de formar uma única matriz para o desejo de imortalidade do ser humano. Inclusive, tudo indica que neste campo o tempo é menos presente. A ancestralidade convive com o contemporâneo, aqui considerado o fato de que a antiguidade é a pedra basilar da época atual, diferente de uma das intenções do modernismo, que foi a de fazer tabula rasa do passado.

Corpos híbridos demarcados no papel com precisão tal que os transforma em seres animados, essas figuras, quando em exposição, redefinem o espaço ocupado, transformando-o em uma página de quadrinhos. Em tal disposição, a dificuldade de reconhecimento das figuras não se dá por qualquer abstração, mas por sua natureza intrínseca. As cores e atributos de Exú-fêmea conjugadas com a iconografia da Batgirl revelam uma entidade singular, o que aparece em  Superman-Oxalá e Ogum-Wolverine. Neste sentido, em cada pintura da exposição Irúnmolè, algo parece se aproximar do que Edgar Wind qualifica como o exercício de sacrificar deuses e heróis. Para ele, “quanto mais o poeta passa a acreditar nos heróis e deuses cujas imagens lhe povoam o espírito, mais se aproxima do sacerdote. Entretanto, ele só sucumbe totalmente ao enlevo quando ou sacrifica ao deus que é tema de sua poesia ou o compele a se sacrificar.”[1] Neste sentido, a condição de sacrificar deuses e heróis passa a ser a natureza primeira dessas pinturas, que tem por fim a extinção do deus e do herói, em virtude da construção de um sujeito deus-herói, situado em uma condição desterritorializada e atemporal, não pertencente a uma cultura ou tradição específicas. Contudo, sacrificar ao deus e ao herói se traduz aqui como a intenção de fazer com que um ofício torne-se sacralizado. É a intenção de resgatar os valores do rito, de aproximar identidades similares apesar de toda distância cultural. De investigar os limites identitários relativos às personagens que povoam os ritos dos orixás, ou ainda de fazer com que as pinturas reforcem a noção de polaridade de uma imagem e redefinam o paradigma do herói para o mundo atual, que caminha a passos largos em direção ao desfecho da mecanização do corpo.

Diante de certo descaso pela tradição dos ritos e da história popular, o uso da pintura como meio de fundir duas personagens extraídas de HQs e de cultos religiosos com origem africana parece manter certa resistência aos devaneios patológicos do mundo contemporâneo. Parece privilegiar uma tomada de posição por salvaguardar o valor reservado ao limbo. E na zona limítrofe em que essa produção se encontra, sendo ao mesmo tempo resgate e resistência à religião e cultura popular, esses deuses-heróis equivalem a espectros icônicos. Ao final, essa coleção fictícia de personagens dá o tom de parte considerável da condição da vida contemporânea, na qual os mitos situados na tradição milenar são ofuscados por sistemas mitológicos que operam no circuito espetacular e mercadológico.


Josué Mattos



 






[1] Edgar Wind, A eloquência dos símbolos: Estudo sobre arte humanista. Edusp; São Paulo, 1997, pg.82

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