IRÚNMOLÈ e
o desejo por imortalidade
Identificar a origem das figuras que
compõem as obras de Yuri Ferraz é algo incerto. E como o espectador seguro de
seu repertório visual iconográfico pode se ver vítima da necessidade
imediatista de reconhecer a identidade das figuras a sua frente, é melhor
começar este texto por aquilo que, aparentemente, a sua produção não oferece.
De fato, como representar não é a intenção primeira do artista, vale notar que
identificar as figuras pode ser um exercício complicado. Isso porque o conjunto
de pinturas oscila entre o reconhecível e o imaginado, formando uma entidade a
partir da fusão de heróis e deuses. Cada um sendo um símbolo independente,
evoca o desejo de imortalidade que, em todas as tradições, de todos os tempos,
é reconhecido como o maior anseio do ser humano. O que o artista procura
identificar são problemas decorrentes do fato de associarmos nosso desejo por
imortalidade ao efêmero mundo fenomênico. O que resulta, incontestavelmente, em
um dos maiores dilemas do sujeito enquanto lida com questões relacionadas a
instabilidade e vulnerabilidade do corpo. No contra-fluxo deste dilema, as
personagens míticas e populares, cuja identidade é venerada por carregar em
nível supra-humano força, poder, fama e imortalidade, aparecem em meio a lutas
fratricidas, aplicando em batalhas toda a potência venerada pelos mortais.
Trata-se de grandes criadores, guerreiros e deuses, todos adoráveis em ritos
ancestrais ou contemporâneos, encontrados em templos, nas telas de televisão, em
álbuns de história em quadrinhos ou ainda através da sucessão de iniciados que
mantêm a tradição dos ritos africanos. Estreitando o espaço e a existência de
cada um deles, o artista instaura o que ele define como “campo de amplidão”, um
lugar onde tempo, Natureza e Cultura díspares convivem na intenção de formar
uma única matriz para o desejo de imortalidade do ser humano. Inclusive, tudo
indica que neste campo o tempo é menos presente. A ancestralidade convive com o
contemporâneo, aqui considerado o fato de que a antiguidade é a pedra basilar da
época atual, diferente de uma das intenções do modernismo, que foi a de fazer
tabula rasa do passado.
Corpos híbridos demarcados no papel
com precisão tal que os transforma em seres animados, essas figuras, quando em
exposição, redefinem o espaço ocupado, transformando-o em uma página de
quadrinhos. Em tal disposição, a dificuldade de reconhecimento das figuras não
se dá por qualquer abstração, mas por sua natureza intrínseca. As cores e
atributos de Exú-fêmea conjugadas com a iconografia da Batgirl revelam uma
entidade singular, o que aparece em Superman-Oxalá e Ogum-Wolverine. Neste
sentido, em cada pintura da exposição Irúnmolè,
algo parece se aproximar do que Edgar Wind qualifica como o exercício de
sacrificar deuses e heróis. Para ele, “quanto mais o poeta passa a acreditar
nos heróis e deuses cujas imagens lhe povoam o espírito, mais se aproxima do
sacerdote. Entretanto, ele só sucumbe totalmente ao enlevo quando ou sacrifica
ao deus que é tema de sua poesia ou o compele a se sacrificar.”[1]
Neste sentido, a condição de sacrificar deuses e heróis passa a ser a natureza
primeira dessas pinturas, que tem por fim a extinção do deus e do herói, em
virtude da construção de um sujeito deus-herói, situado em uma condição
desterritorializada e atemporal, não pertencente a uma cultura ou tradição
específicas. Contudo, sacrificar ao deus e ao herói se traduz aqui como a intenção
de fazer com que um ofício torne-se sacralizado. É a intenção
de resgatar os valores do rito, de aproximar identidades similares apesar de
toda distância cultural. De investigar os limites identitários relativos às
personagens que povoam os ritos dos orixás, ou ainda de fazer com que as
pinturas reforcem a noção de polaridade de uma imagem e redefinam o paradigma
do herói para o mundo atual, que caminha a passos largos em direção ao desfecho
da mecanização do corpo.
Diante de certo descaso pela
tradição dos ritos e da história popular, o uso da pintura como meio de fundir
duas personagens extraídas de HQs e de cultos religiosos com origem africana parece
manter certa resistência aos devaneios patológicos do mundo contemporâneo.
Parece privilegiar uma tomada de posição por salvaguardar o valor reservado ao
limbo. E na zona limítrofe em que essa produção se encontra, sendo ao mesmo
tempo resgate e resistência à religião e cultura popular, esses deuses-heróis equivalem
a espectros icônicos. Ao final, essa coleção fictícia de personagens dá o tom
de parte considerável da condição da vida contemporânea, na qual os mitos
situados na tradição milenar são ofuscados por sistemas mitológicos que operam
no circuito espetacular e mercadológico.
Josué Mattos
[1] Edgar
Wind, A eloquência dos símbolos: Estudo
sobre arte humanista. Edusp;
São Paulo, 1997, pg.82
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